
pesquisaFAV | Design como ferramenta de valorização e luta social
Discente da FAV foi premiada por dois anos consecutivos em Programa de Iniciação à Pesquisa Científica, Tecnológica e em Inovação

A estudante Ana Terra Castro Viana (20), graduanda do sétimo período do curso de Design Gráfico, da Faculdade de Artes Visuais (FAV/UFG), recebeu os prêmios pelas pesquisas A ilustração crítica no design ativista e História em quadrinhos e os estudos culturais no design gráfico social: narrando resistências e causas sociais.
Em ambas as ocasiões, Ana venceu na categoria Linguística, Letras e Artes, na 19ª e 20ª edição do Prêmio UFG de Iniciação à Pesquisa. A premiação é anualmente concedida por iniciativa da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI/UFG).
RABISCOS COLÉRICOS
Em seu primeiro projeto, A ilustração crítica no design ativista, realizado entre 2020 e 2021, a estudante se debruçou sobre a noção do Design enquanto um dispositivo de denúncia e crítica de problemáticas sociais. Isso porque, segundo ela, a área de atuação do designer pode ser concebida por um olhar diferente do convencional.
“O design por muito tempo foi tido como uma atividade exclusivamente mercadológica”, afirma a graduanda, “no entanto, pode ser utilizado como uma significativa ferramenta de luta social e questionamento do status quo, em busca de dignidade e justiça”, reforça.
Uma das inspirações elencadas pela acadêmica é o filme Adu. A narrativa cinematográfica conta a história de uma criança que, ao se tornar órfão, escapa da África junto à irmã com destino às regiões fronteiriças da Europa, em busca de melhores condições de vida.
Outro ponto inspirador para o trabalho foi a temática da crise mundial dos refugiados, a qual resultou em duas ilustrações: Naufrágio e Temporário. Ana diz que o processo criativo “envolveu esboços e referências de dobraduras de papel, resultando em ilustrações finais produzidas manualmente com tinta aquarela, lápis de cor e caneta nanquim”.

SERTÕES QUADRICULADOS

A segunda pesquisa, por outro lado, teve como objetivo combinar os conceitos Estudos Culturais — cujo olhar é orientado para as manifestações culturais cotidianas — e o Design Social — descrito pela autora como um “instrumento em favor da sociedade”.
Dessa forma, a investigação partiu do seguinte questionamento: Histórias em Quadrinhos podem contribuir para o design gráfico socialmente engajado?. Ana procurou traçar relações entre representatividade e resistência cultural presentes nesse tipo de narrativa. O resultado material do estudo foi uma HQ produzida por Ana, nomeada Minha Jornada.
“O Design Social”, diz a discente, “por natureza, reflete e representa a cultura que está inserido (sic.). Isto se faz especialmente importante ao refletirmos sobre o papel identitário das culturas, que, em um mundo globalizado, lutam para sobreviver diante da massificação e internacionalização cultural”.

Nesse sentido, ela conduziu uma apuração e análise de manifestações culturais em âmbito nacional e local de HQ’s produzidas no Brasil. Para tanto, um repertório teórico de cada temática foi construído. Nele, além dos conceitos já apontados, foi incluído o HQ social, que traz à tona abordagens em volta do racismo, desigualdade de gênero, homofobia, entre outras lutas contemporâneas.
Alguns exemplos de HQ’s brasileiras catalogadas são Jeremias, de Jefferson Costa e Rafael Calça, publicada pelo estúdio de arte Maurício de Sousa; Tina, de autoria de Fefê Torquato, lançada pelo mesmo estúdio; e Bendita, por Mário Cézar. O restante da listagem pode ser encontrado no relatório de pesquisa da autora.
VARRIDOS (IN)NATURA
Aliados aos dados obtidos na revisão literária, com perspectiva nas questões sociais com as experiências pessoais, o tema imigração surgiu dominante no projeto de Ana sobre histórias em quadrinhos.
Nesse sentido, oponto crucial do trabalho partiu da busca pela causa do movimento realizado por retirantes nordestinos, que se mudaram para a nova capital do país, Brasília, na década de 60, em razão da seca que ocorria no nordeste. À época chamados de “candangos”, uma parcela significativa dessas pessoas trabalharam, de alguma forma, na construção da futura metrópole. Esse tipo de imigração está enquadrada na categoria de “refugiados climáticos”, conceito trabalhado pela estudiosa Carolina de Abreu Batista Claro.

De acordo com A ACNUR (Agência da Onu para Refugiados) a definição de “Refugiado” está elencada como aquelas pessoas “que estão fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um determinado grupo social ou opinião política, como também devido à grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados”.
O conceito não abarca os fatores ambientais ou de mudança do clima, por isso, é possível encontrar também outros termos. O autor Michel Prieur, por exemplo, trabalha com a terminação “deslocado ambiental” para se referir aos refugiados relativos aos impasses decorrentes da natureza ou das consequências das ações humanas sobre ela.

Em 1985, em seu livro “Environmental refugees”, o autor Essam El-Hinnawi definiu, durante a Conferência das Nações Unidas em Nairobi, os refugiados ambientais como "pessoas que foram forçadas a deixar seu hábitat tradicional, temporária ou permanentemente, devido a uma perturbação ambiental acentuada (natural e / ou desencadeada por pessoas) que colocava em risco sua existência e ou afetaram seriamente a qualidade de sua vida” (tradução livre).
É importante dizer, contudo, que existe uma pequena diferença formal entre “refugiado ambiental” e “deslocado climático”. O primeiro é aquele que conseguiu atravessar as fronteiras do seu país de origem para tentar refúgio em outros territórios. O segundo, não.
A pesquisa de Ana encontra ressonâncias em trabalhos recentes vinculadas ao assunto, em especial quando verificados os dados atuais. Consoante ao relatório anual do GRID - The Global Report in International Displacement, principal fonte de dados e análises sobre deslocamentos no mundo, em 2021, foram contabilizados 5,9 milhões de refugiados decorrentes de desastres naturais em 84 países e territórios.
Ainda segundo o documento, a adversidade ambiental é uma das principais causas de deslocamento de pessoas nas Américas, alcançando 1,7 milhões. Tempestades, alagamentos, incêndios florestais e riscos geofísicos são as principais calamidades enfrentadas. No Brasil, o total de deslocados é de 449 mil.
Os números ressaltam a relevância de se tratar desse tema, em especial de forma artístico-crítica como no trabalho de Ana Terra, na tentativa de alcançar mais visibilidade e espaço para o assunto. A partir dessas informações, a pesquisa traçou um panorama histórico-cultural e evoca uma ótica imagética — por meio da HQ — acerca da problemática escolhida.

FRAMES NOSTÁLGICOS

O interesse pela questão dos refugiados remete, de maneira direta, à vida pessoal de Ana Terra. Seu avô, Geraldo José Viana, era retirante nos anos 60 e veio do Rio Grande do Norte para Brasília aos oito anos de idade. A história em quadrinhos, criada ao final do estudo, concentra-se justamente em sua vivência desafiadora na nova cidade.
Na produção, Geraldo se torna o personagem “Senhor Viana”, cujas memórias da infância são despertadas ao tocar, em um pandeiro, uma música que o lembra de sua vida nesse período. Através do caráter lúdico e da escrita literária, narra-se, em um primeiro instante, a infância do protagonista e suas adversidades no campo.

Mais adiante, a narrativa também percorre a experiência da família de Geraldo na mudança para a nova capital do país, ocasionada pelos obstáculos da seca, como a morte das lavouras e do gado que davam sustento à família do Senhor Viana quando criança.
Nas palavras de Ana Terra:
“A cada página, uma estrofe da música continua sendo cantada, enquanto a nova vida do menino na cidade é mostrada até se transformar em um adulto. No último verso da canção, a cena volta para o presente, onde o senhor toca a última nota para sua neta que o assiste. Um outro neto chega e puxa o avô pela mão, o chamando para uma fotografia em família”.
Essa fotografia, na HQ, é posada e foi tirada em contagem regressiva pelo fotógrafo. Os filhos e netos estão com o idoso no meio. A foto, por sua vez, traduz um momento metalinguístico onde a pesquisadora demonstra, através da história, como foi a experiência de ouvir o relato do próprio avô sobre os acontecimentos de sua infância.
ARIDEZ RESGATADA
De maneira saudosa, a pesquisa de onde decorre a HQ também flerta com a literatura nacional de ficção, cujo enfoque foi dado antes da temática da seca em suas obras. Ana relembra a relevância de tais obras para sua pesquisa.
Em 1930, Rachel de Queiroz publicou O Quinze, uma espécie de encontro entre autor e história. A escritora, afinal, havia se mudado com a família para o Rio de Janeiro para fugir da seca.
Oito anos depois, na mesma curva estilística, Vidas Secas, do alagoano Graciliano Ramos, escancarou impressões do sertanejo nos sertões nordestinos sob o sol escaldante, mais uma vez fazendo referência direta à vida de quem escreveu a obra. Segundo Ana, este livro teve papel essencial na construção da HQ, pois “foi estudada em sua linguagem visual, uso de cores, traços e estilo”.
Mais tarde, entre 1954 e 1955, a poesia do pernambucano João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, viria revelar de maneira visceral as condições de miséria e morte social pelas quais passavam os retirantes, fechando assim a tríade modernista do período.

Além das representações alocadas nessas obras, Terra elege a música Asa Branca de Luiz Gonzaga como um dos alicerces para compor a história em quadrinhos. “Através dessa canção”, diz a pesquisadora, “o leitor é conduzido por uma viagem pelas memórias de uma vida única, porém com caminhos tão semelhantes a muitos retirantes de nosso Brasil”.
Assim, Minha Jornada, de Ana Terra, traz de volta a memória de uma paisagem regional, cenário de criações anteriores, porém em circunstâncias insustentáveis. Como Chico Bento em O Quinze ou Fabiano em Vidas Secas, Senhor Viana é mais um dos protagonistas que insistem em superar as barreiras sociais, geográficas e climáticas da precariedade dos imigrantes nordestinos do país. Cláudio Aleixo, orientador de Ana Terra nos dois trabalhos, explica:
“[...] nos dedicamos a compreender as adversidades enfrentadas pelos refugiados de tal forma que pudéssemos representá-las em ilustrações críticas que sintetizassem seus dissabores diários. Nos interessava demonstrar como o designer gráfico, por meio da arte de ilustrar, pode inspirar nas pessoas o desejo por um mundo melhor, mais justo e humanizado”.

ANATOMIA DA HISTÓRIA

Ana declara que a estética da literatura de cordel foi usada como referência para o design dos quadrinhos, na intenção de trazer elementos da cultura nordestina. Impressos em xilogravura, e os cordéis eram próprios dessa região do país, e contavam histórias curtas em versos, dispostas em uma linguagem coloquial e regionalista.
As influências desse formato de criação literária se encontram tanto nos traços da ilustração, quanto nos diálogos e no layout. Conforme a estudante, foram incorporadas “formas angulosas e geométricas encontradas especialmente na tipografia”. Também estão presentes símbolos marcantes do imaginário nordestino, como “sol, vegetação e vestimentas”, similares às referências fotográficas e ilustradas dos cordéis. Por fim, há o “alto contraste entre preto e branco”.
Vale salientar que a experiência da discente do curso de Design Gráfico, a partir da disciplina optativa Histórias em Quadrinhos de Autor, ministrada pelo professor Cláudio Aleixo, foi ideal para construir as habilidades aplicadas à HQ. Por meio dessa matéria, a graduanda entrou em contato com fundamentos para a criação de narrativas gráficas e diversas técnicas adotadas na prática da pesquisa, como o recurso do flashback.
No relatório de seu trabalho, Terra diz que “as ilustrações foram feitas à mão com grafite, e escaneadas para manter a rusticidade do traço. Nos balões de fala, foi incorporada a técnica de recortes de papel para acrescentar dinamismo e complexidade à obra”.
BALIZAS FINAIS
Os primeiros contatos com o processo de pesquisa "revelaram alguns desafios", conta a discente. A pouca experiência na área de pesquisa e a falta de proximidade com “normas a serem seguidas”, em especial a ABNT, se mostraram as principais dificuldades na composição do projeto segundo Ana. Porém, os elementos que a pesquisadora encarou como obstáculos, foram superados por meio da instrução e apoio do orientador.
A respeito das premiações, a pesquisadora reforça que são um sinal de que ela está no caminho certo em seus estudos. Os projetos traduzem, segundo ela, “a importância do que temos pesquisado não acaba em nós, mas é relevante à sociedade”.
Para Cláudio Aleixo, receber o reconhecimento da academia o trouxe a confirmação sobre a centralidade do fator humano na área científica. Este ângulo é, de acordo com ele, “o propósito de todo o saber, não apenas no design gráfico, mas na atuação profissional de todas as áreas do conhecimento”.
No ano passado, Ana participou de uma equipe de acolhimento, em Goiânia, à uma família de refugiados vindos do Afeganistão. Recentemente ela realizou um curso na Escola Cooperação Humanitária sobre Refugiados, em Vitória/ES. Por fim, a quadrinista se prepara para participar de um fórum sobre refugiados organizado pelo Centro de Apoio Socioassistencial (Associação CASA) em São Paulo/SP.

Contatos
Ana Terra: @anaterra.art. ou terra.terra@discente.ufg.br
Claudio Aleixo: claudioaleixo@ufg.br
PesquisaFAV é uma série textual com foco nos processos de pesquisa do cotidiano da FAV com o objetivo de popularizar a produção científica por meio de linguagem simples e acessível.
*Piter Salvatore é estagiário do curso de Jornalismo orientado pelo jornalista Renato Cirino e pela professora Luana Borges.
Fonte: Piter Salvatore* com revisão de Renato Cirino
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