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pesquisaFAV | As projeções de indivíduos transgêneros nas telas brasileiras

Por Renato Cirino. Em 20/10/23 16:16. Atualizada em 03/11/23 09:22.

Estudo de mestrando da FAV analisa criticamente representações de pessoas trans no cinema nacional

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Princesa Ricardo em performance, DIGO 2019 — Foto: Mariana Cartaxo

A pesquisa de Cristiano de Oliveira (45), tem como resultado um documentário onde dez pessoas transgênero narram suas visões a respeito de alguns personagens do cinema brasileiro identificados como trans. Com isso, é trazido à tona que abordagem positivas sobre personagens transgênero são irrisórias em detrimento do alto número de representatividades negativas.

O projeto, vinculado ao Programa de Pós Graduação em Arte e Cultura Visual (PPGACV/UFG) da Faculdade de Artes Visuais (FAV), busca compreender como essas performances visuais têm efeito sobre as rotinas das entrevistadas, e de que maneira suas histórias foram abordadas em tais obras, considerando o retrato dessas personagens nas telas.

Com o nome “Impressões da personagem transgênero no Cinema Brasileiro” o trabalho do pesquisador promove uma discussão acerca do papel da visualidade e da cinematografia na cultura do país, haja visto o impacto e a influência que as narrativas audiovisuais podem trazer para a vida dos cidadãos.

CURVAS PROFISSIONAIS

Iniciado em março de 2022, o estudo adota uma perspectiva mais engajada com as colaboradoras da pesquisa, pois se fundamenta nos relatos das próprias pessoas transgênero e suas interpretações. Ao fazer isso, a pesquisa insere a visão desse grupo no projeto, aproximando o possível público da perspectiva das participantes.

A orientadora da pesquisa, Rosa Berardo, comenta que os dados trazidos podem “mostrar a importância e o tamanho expressivo de indivíduos que compõem a comunidade transgênero na sociedade brasileira”. Em complemento, arremata ao dizer que o estudo traz informações “sobre o apagamento e negação da identidade de gênero dessas pessoas”.

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Cristiano, em pesquisa de campo, entrevista Leona (2023)

Nesse raciocínio, Cristiano comenta que “as entrevistas presenciais transcorreram em um ambiente de empatia e respeito, criando um espaço propício para que os participantes compartilhassem suas histórias e desafios pessoais”. O trabalho minucioso com a metodologia de pesquisa unida à prática da sensibilidade foram cruciais para o andamento saudável na relação entrevistador - entrevistadas.

Segundo o pesquisador, sua experiência com a iniciativa tem sido “cativante e reveladora”. Os dados colhidos com as entrevistas presenciais permitiram a ele ouvir mais das histórias do grupo social em questão e perceber melhor seus estigmas. Dessa forma, há, de acordo com a análise do autor, uma série de problemáticas sobre as representações brasileiras de pessoas trans nas telas.

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A atriz goiana Camilla Miss no set de filmagens da pesquisa de campo de Cristiano  — Foto: arquivo pessoal

MIRAGENS REPRESENTATIVAS

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A Rainha Diaba (1974)

“As entrevistadas expressaram indignação ao perceber a falta de um histórico de tais personagens”, afirma Cristiano, “com uma completa ausência de referências positivas”, acrescenta. Entre os exemplos dessa perspectiva elencados pelo estudioso, estão A Rainha Diaba (1974), Os Machões (1972), A Casa Assassinada (1971), A República dos Assassinos (1979), além de tantas outras produções nacionais.

Diante desses fatores, para o autor, no Brasil, “o cinema carece de um diretor ou diretora transgênero reconhecida por ter dirigido um filme, comercial ou não”, no contexto e cenário brasileiro. Essas lacunas expressam como há necessidade de aperfeiçoamento dessas representatividades, com a necessidade de se criar espaços para que pessoas que se identificam enquanto transgêneras possam elaborar seus próprios discursos visuais.

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Os Machões (1972)

Mas nem toda filmografia ou obra cinematográfica produzida em terras brasileiras sofre do mesmo impasse. “O cinema”, aponta o acadêmico, “de fato, tem sido uma ferramenta poderosa para abordar histórias de pessoas transgênero e confrontar a violência que muitas vezes é retratada em filmes populares do país”.

A Profa. Dra. Rosa Berardo declara que a “auto-representação” é um dos mecanismos de luta “contra o preconceituoso modo de retratar esses personagens” nas telas. Há, no entanto, falta de acesso para essas produções, “poucos conseguem”, reforça a pesquisadora. Para ela, trabalhos como o de Cristiano são um importante meio de levar ao público tais manifestações artísticas.

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Atriz Anne Celestino do filme Alice Júnior (2019)

Embora esse viés de produção ainda não tenha sido explorado totalmente, existem filmes que vêm tentando transformar esse estado da arte em discursos menos problemáticos, protagonizando pessoas identificadas como trans. Há trabalhos cuja proposta consegue ser poderosa em confrontar as estruturas preconceituosas e discriminatórias. A respeito desse desse aspecto, Cristiano comenta: 

“Ao considerar o cinema brasileiro, não podemos subestimar o seu papel na luta pela igualdade e na desmistificação de ideias equivocadas. Cineastas, por meio de narrativas ousadas e genuínas, têm revelado aspectos da opressão que passavam despercebidos, trazendo à luz vozes frequentemente negligenciadas pela televisão”.

São exemplos cinematográficos de boas representações listadas pelo mestrando em Arte e Cultura Visual: Alice Júnior (2019), Paloma (2022) e Valentina (2020). Nesses longas, as histórias trazem protagonistas trans interpretadas por pessoas com essa mesma identificação. A última produção tem no elenco a YouTuber Thiessa Wonbackk, a qual marca sua estreia na carreira de atriz com o filme em pauta.

CONEXÕES PARALELAS

Cristiano afirma que uma das vantagens na condução das entrevistas foi o seu envolvimento com o DIGO Festival Internacional de Cinema da Diversidade Sexual em Goiás (ou somente DIGO). Conforme o mestrando, ser o diretor do festival proporcionou: “um senso de conforto adicional” para as entrevistadas.

Ou seja, as mulheres trans que foram submetidas às entrevistas ficaram mais à vontade para colaborar com a pesquisa, ao trazerem mais veracidade aos seus relatos e garantir, com isso, a fidelidade de seus pontos de vista. Esse detalhe foi fundamental, pois o estudo se centra de modo majoritário nas narrativas expressas pelas fontes consultadas.

Em relação ao DIGO Festival, trata-se de um projeto independente o qual visa promover a divulgação de obras de vários formatos que tratem da temática LGBTQI+. Neste ano, a iniciativa conta com um tema central: “Para onde vai nosso Pink Money?”¹

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Pesquisador, diretor e organizador do Digo, Cristiano de Oliveira Sousa

PIONEIRISMO CULTURAL

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Realizadores, equipe e participantes do DIGO 2017 no Centro Cultural da UFG

O DIGO alcançou, na última edição, mais de um milhão e meio de interações em edição híbrida. Este ano, contudo, o evento foi majoritariamente presencial, tendo acontecido entre os dias 27 e 30 de julho de 2023.

Na ocasião, os participantes puderam contar com uma feira de diversidade, apresentações teatrais, performances, exposições artísticas e exibições de filmes da programação on-line do festival pela plataforma Cinebrac. O evento foi realizado no Cine Teatro Zabriskie, em Goiânia.

Cristiano também é um dos fundadores da Red DIVERCILAC – Diversidad en el Cine Latinoamericano y Caribeño – rede de festivais da América Latina e do Caribe. Além de fazer parte do Fórum Nacional dos Organizadores de Eventos Audiovisuais Brasileiro (Fórum dos Festivais) ao inspirar conexões e networking.

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Premiação no DIGO 2022

Cristiano considera que o sucesso significativo cuja celebração tem obtido demorou a acontecer. Foi um circuito recheado de recusas, de negligência por parte de investidores diretos ou do mecenato para apoiar projetos do mesmo patamar que o DIGO.

“Enfrentei dificuldades relacionadas ao preconceito em torno do tema LGBTQI+ dentro da sociedade, do setor audiovisual e por parte das autoridades públicas no estado de Goiás. [...] unicamente devido à abordagem do tema da diversidade sexual e de gênero”, relata Cristiano.

Ao longo dos anos, porém, o pesquisador tem vencido as barreiras sociais e discriminatórias relacionadas à comunidade LGBTQI+, abrigando diversas iniciativas em seu currículo, como também em suas contribuições para a sociedade.

TRAVESSIAS 

Não é a primeira vez que o autor do estudo trabalha com a temática da diversidade sexual e de gênero. Ele já produziu mais de 30 curtas-metragens premiados em festivais tanto no Brasil quanto no exterior. Para além do DIGO, atua na diretoria e curadoria de outros dois eventos de Cinema pioneiros no Centro-Oeste, O Morcego Vermelho Fest e o Go Film Festival.

No campo do audiovisual e das artes, seus projetos se ampliam ainda mais. Membro fundador da Diver Cilac (Rede latino-americana de festivais) e membro da direção do Fórum dos Festivais (Fórum Nacional Dos Organizadores De Eventos Audiovisuais Brasileiros) e da Fantlatam (Aliança latino-americana de festivais de Cinema Fantástico). Atua também na gestão de outras organizações, além de ser fotógrafo premiado, assim como produtor de espetáculos teatrais e artes integradas.

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Set de filmagens do filme curta-metragem O caminho do mau (Dir. Cristiano Sousa, 2014)

1. Pink Money, em tradução livre,”dinheiro rosa”, é o poder de compra e financiamento oriundo do público LGBTQI+.


Contatos

Cristiano Oliveira: cristianosousa@discente.ufg.br

DIGO: digo@digofestival.com.br

PesquisaFAV é uma série textual com foco nos processos de pesquisa do cotidiano da FAV com o objetivo de popularizar a produção científica por meio de linguagem simples e acessível.

*Piter Salvatore escreveu este texto enquanto estagiário do curso de Jornalismo orientado pelo jornalista Renato Cirino e pela professora Luana Borges.

Fonte: Piter Salvatore* com revisão de Renato Cirino

Categorias: pesquisaFAV Notícias FAV PPGACV Cinema Identidade de Gênero Transgênero