
pesquisaFAV | Linguagens transmidiáticas em universo distópico
Tese vinculada ao PPGACV explora resistência cultural pela combinação de mídias em trabalho singular

FICÇÃO PSICODÉLICA
MekHanTropia: autoconhecimento e (re)existência em um universo transmidiático, experimental, colaborativo e autoral é a tese de doutorado de Frederico Carvalho Felipe (42), que atende também pelo pseudônimo Fredé CF. Em 2023, ele se tornou doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais (PPGACV/FAV) da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Com a tese, o pesquisador entrecruzou vários tipos de mídia em trabalhos artísticos únicos, no intuito de provocar uma reflexão sobre os modos pelos quais a sociedade brasileira lida com a tecnologia e com as nossas chamadas “sombras” pessoais.
Como resultado do processo de pesquisa, foi produzido um universo ficcional de tipo filosófico e poético, tendo como um dos seus resultados, além da própria tese, um jogo de mesa de RPG (Role Playing Game).
O nome da pesquisa é uma combinação da palavra “Mekos”, que significa “máquina”, e “anthropos”, que quer dizer “humano” em grego. O nome do meio, “han”, alude ao pensador Byung-Chul Han, principal referência teórica da utilizada na tese.
O MekHanTropia é um universo distópico inventado pelo artista onde as pessoas perderam os contatos humanos e procuram encontrar saídas para suas mazelas pessoais por meio dos sonhos. Daí advém a visualidade do projeto em confluência com a estética surrelista e onírica.
A pesquisa pode ser lida em dois formatos: como tese; porém, também como um jogo de RPG clássico. O autor explicita que ele próprio é um dos personagens, o qual narra seu processo de criação do universo ficcional no papel de um pesquisador que se arrepende das proporções distópicas que culminaram o MekHanTropia. Trata-se de uma “tese-arte”.

CIBERSUBVERSÃO MIDIÁTICA

A ideia da iniciativa surgiu, de acordo com o autor, durante o período pandêmico, quando houve um aumento da dependência das tecnologias digitais. Ele notou que alguns processos vigentes os quais atravessam o meio social contemporâneo, como compra, consumo, produtividade e informação se tornaram, todos eles, de caráter “hiper”, ao ponto de se estenderem durante uma jornada diária de 24 horas.
Essa circunstância gerou, segundo o doutorando, novas “angústias nos indivíduos cada vez mais padronizados em função do mercado”. Por causa dessa problemática, Frederico passou a pensar na relação sociedade x tecnologias. Estas que, apesar de indispensáveis, tornaram-se também a origem de novos problemas.

De maneira pedagógica, portanto, o pesquisador afirma que seu trabalho objetiva questionar “padrões condicionadores da sociedade atual imersa nas redes”. Tais redes seriam o emaranhado de sites, aplicativos e páginas de comunicação da Internet. Entre as que mais se destacam estão as redes sociais como Instagram, WhatsApp e YouTube.
O pesquisador declara que, a partir da criação desse mundo de ficção, deve haver o encontro de “formas de resistência contracultural e despadronização”, que alcancem, nas pessoas, o “autoconhecimento e o enfrentamento ao obscurantismo institucionalizado”. Frederico utiliza, portanto, das tecnologias para criticar o próprio uso problemático dessas mesmas tecnologias.
No estudo, esse processo se realiza por meio da chamada arte colaborativa e experimental. Os recursos da web são tratados como provedores de práticas artísticas de questionamento, e não como simples ferramentas.
EXPERIMENTALISMOS NA WEB
Os mecanismos tecnológicos de criação artística e visual contemporâneos, para o pesquisador, não precisam ser espaços onde nos prendemos às suas propriedades. Pelo contrário, ele diz: “a minha criação, de forma geral, não tenta se adaptar às novas tecnologias, mas sim trazer as aquelas que melhor se adaptem ao que quero criar, sejam elas novas ou mais antigas”.
Nessa perspectiva, se, para iniciar uma ilustração, por exemplo, um ou outro aplicativo ou dispositivo é visto como um dos monopolizadores da prática artística de tantos usuários, Frederico busca outro procedimento. Em vez de se ater a esta ou aquela ferramenta, ele as agrega, produzindo obras que são fruto de variadas linguagens.
“Assim, não há tantos limites para qual tecnologia eu possa usar, seja um violão acústico, um sintetizador, um celular, uma câmera, uma inteligência artificial ou um lápis com papel. [...] Tento pensar nas tecnologias de forma libertária e revolucionária, não escravizante e alienante, como acontece bastante, nos prendendo pelo desejo atiçado pela publicidade aos ditames institucionalizados do hiperconsumo”.
Dessa forma, o viés da pesquisa se volta para a subjetividade dos indivíduos e também do próprio pesquisador. É um projeto que “representa a jornada pela busca do animal interior, em um encontro poético com a lenda do Cão Breu, um ser fantástico que provoca um olhar às sombras em meio à Sociedade do Cansaço e da Transparência”.

LIGAÇÕES EXTERNAS

Cão Breu é uma criação de Frederico em referência à sua banda de rock homônima. Guilherme Tell, guitarrista, contava sobre essa lenda para o grupo segundo os relatos de sua avó, que morava no Piauí, região de onde surgiu a história acerca da criatura negra de olhos em chamas. “Se você visse ele, você tinha que olhar para dentro e tratar suas próprias sombras”, afirma Fredé.
Na linguagem do jogo de RPG, porém, o Cão Abreu é uma entidade que, contemplada pelos indivíduos da sociedade distópica do MekHanTropia, é capaz de fazê-los voltarem para seu eu interior e se encontrarem com suas sombras.

O universo social em questão conversa com a teoria do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, na qual o mundo contemporâneo tem sido marcado pelo excesso de cobranças por produtividade e positividade. No trabalho, exigências cada vez maiores de tarefas a serem cumpridas pelos profissionais. Nas redes sociais é necessário expor a todo instante momentos felizes, conquistas e vantagens, mas é raro ver algum relato de um instante inoportuno.
Esse estado leva ao espírito do tempo que o autor sul-coreano chamou de “Sociedade do Cansaço e da Transparẽncia”. Novos problemas têm surgido dessas cobranças em demasia, tais como a Síndrome de Burnout e os impasses com a saúde mental. Falhas, vulnerabilidades e defeitos, as nossas “sombras" pessoais, são postas de lado. Na Pandemia, como elencado por Fredé em sua pesquisa, essa característica se agravou.
UM OLHAR PARA O EU
Em desenvolvimento desde 2019, a pesquisa acompanhou, inclusive, uma experiência de fuga do pesquisador nos anos em que se enfrentou mais ativamente o confinamento, provocado pela prevenção contra a COVID-19. O trabalho, foi, naquele período, “uma válvula de escape emocional e racional importante para dar vazão ao que me tocava”, afirma o pesquisador.
A narrativa ficcional criada para o projeto tem sido fruto da união de muitos produtos em linguagens distintas. De acordo com Frederico, são elas: “obras musicais, audiovisuais, ensaios fotográficos, jogos, desenhos, imagens utilizando redes neurais/inteligência artificial, entre outras representações artísticas que poetizam e expandem o universo proposto a diversas configurações e possibilidades”.

Algumas das músicas já produzidas pelo artista transmídia se relacionam com o caráter onírico de sua proposta e a multiplicidade do seu estudo. “Espelho de Obsidiana”, “Depois do futuro” e “Canúbis” fazem parte do catálogo das 14 produções autorais, algumas em colaboração direta com seu coorientador, Edgar Franco, pós-doutor em Artes. Todas as obras musicais podem ser encontradas no BandCamp.
Mais conteúdo do pesquisador, principalmente do tipo audiovisual, está disponível no YouTube, na forma de vídeo-clipes e produtos experimentais. No Instagram, encontram-se fotografias, poesias e vídeos voltados para o “MekHanTropia”. Já em um horizonte mais textual, o blog de Fredé traz à tona comentários, resenhas e análises sobre seus trabalhos, oferecendo uma elucidação mais abrangente a respeito das singularidades que permeiam sua obra transmidiática.

MULTIVERSALIDADE

De modo igualmente plural e versátil, a pesquisa reúne uma cooperação entre profissionais de várias áreas. Apesar de enquadradas dentro da Arte e da Visualidade, são propostas muito específicas que, por meio do estudo, passam a se comunicar.
A orientação foi realizada pela Rosa Berardo, fotógrafa, docente do campo do design e cineasta com produções ativas no estado de Goiás; enquanto que a coorientação é do Edgar Silveira Franco (Ciberpajé), referência nos assuntos de transmídia, multimídia e arte no universo cibernético.
Até o momento, a carreira profissional de Frederico também se manteve multifacetada e transdisciplinar. Ele já atuou como professor universitário da UniAraguaia nos cursos de Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Marketing Digital (pós-graduação). Lecionou na área de Design na Faculdade Estácio de Sá, e ministrou as disciplinas de Artes, Filosofia e Laboratório Inteligência de Vida no Colégio Victória Figueiredo em Goiânia, do 6° ao 9° ano.
Fora da sala de aula, foi presidente da ONG Cenarte (Centro de Cultura Colemar Natal e Silva), tendo trabalhado como freelancer em produção, roteiro e direção.
PesquisaFAV é uma série textual com foco nos processos de pesquisa do cotidiano da FAV com o objetivo de popularizar a produção científica por meio de linguagem simples e acessível.
*Piter Salvatore escreveu este texto em 2023 quando era estagiário do curso de Jornalismo orientado pelo jornalista Renato Cirino e pela professora Luana Borges.
Serviço
Obras musicais: https://fredecf.bandcamp.com
Canal no Youtube: https://www.youtube.com/user/fredcfelipe/videos
Blog: http://mealuganao.blogspot.com
Instagram: https://www.instagram.com/fredecf
Contatos
Frederico: fredcfelipe@gmail.com
Rosa Berardo: rosa_berardo@ufg.br
Edgar Franco: edgar_franco@ufg.br
Fonte: Piter Salvatore* com revisão de Renato Cirino
Categorias: pesquisaFAV PPGACV performance transmídia